Em 2017, com o ensaio sobre as vítimas do vírus Zika no sertão do Brasil, o fotojornalista Lalo de Almeida foi premiado no World Press Photo, o maior reconhecimento do fotojornalismo mundial. Depois disso, vieram mais duas grandes séries. Uma que mostra a crise do clima e como ela afeta a vida das pessoas em três continentes e outra que retrata um mundo de muros por meio de reportagens feitas em quatro continentes.
Lalo de Almeida ingressou no fotojornalismo trabalhando em pequenas agências de Milão. Ainda na Itália fotografou temas nacionais e internacionais como a guerra na Bósnia. De volta ao Brasil, trabalhou no jornal Estado de S. Paulo, revista Veja e está há mais de duas década na Folha de S. Paulo, além de ser colaborador do The New York Times.
Em produção de um material especial sobre a Amazônia, Lalo abriu espaço para entrevista exclusiva ao blog da SENSU Consultoria de Comunicação em homenagem ao Dia Mundial da Fotografia, que é celebrado nesta quarta, dia 19 de agosto. Um papo no qual um dos mais premiados fotógrafos brasileiros compartilha histórias, analisa as transformações da fotografia desde 1990 (quando ingressou no Instituto Europeo di Design), avalia o mercado atual e dá dicas aos profissionais que estão ingressando no fotojornalismo.
SENSU - Quais são as principais transformações que você observa no fotojornalismo nos últimos 30 anos?
LALO DE ALMEIDA - Foram algumas transformações. Começou com a digitalização da fotografia e o fim do filme. Antes desta revolução, a gente viajava com um laboratório portátil para revelar os filmes e, para poder digitalizar esse filme, havia ainda outro equipamento que a gente utilizava. Era um trambolho só. Outra transformação foi a chegada da internet, que possibilitou o envio de fotos por meio do computador, uma coisa super simples, portátil e rápida. No jornal de papel você tem um espaço limitado, finito. Você tem aqueles tantos centímetros de espaço para colocar o seu trabalho. Na versão online, você pode fazer galeria, apresentar o seu trabalho de outro jeito, misturando com vídeo, áudio, enfim, fazer uma reportagem multimídia.
SENSU - Os veículos impressos e online utilizam fotos de agências internacionais em muitos casos. O quanto esse conteúdo se torna concorrente do trabalho realizado pelos fotógrafos brasileiros?
LALO - Eu não diria que é uma concorrência. A cobertura das agências internacionais é feita em lugares nos quais os fotógrafos dos jornais não têm acesso, não chegam lá. E a cobertura feita normalmente pelos fotógrafos dos veículos impressos é mais local, onde os fotógrafos das agências não cobrem. Nos anos 1990, quando comecei, havia, por parte dos jornais, a assinatura do material das agências. Recebiam milhares de fotografias da France-Presse, Reuters etc. Essas fotografias das agências pautavam o nosso trabalho. Eram a referência de fotojornalismo para os fotógrafos, para os editores, para o jornal de um modo geral. Então, eles tinham uma estética bem específica e o jornal procurava seguir isso. Com o tempo, as agências deixaram de ser um pouco essa referência e elas mesmo se transformaram um pouco e deram mais liberdade. Hoje em dia, as próprias agências internacionais dão mais liberdade para os fotógrafos criarem e desenvolverem os seus estilos próprios. Antigamente você tinha uma coisa muito padronizada. Hoje em dia elas dão espaço para cada fotógrafo desenvolver o seu estilo e suas características.
SENSU - Além de ser referência e não concorrência, essas agências podem ser uma opção para que os fotógrafos brasileiros possam expandir o portifólio? Quando o Brasil é centro de algumas notícias, as agências internacionais demandam trabalho dos profissionais locais?
LALO - É difícil. Normalmente as agências trabalham com seus próprios freelancers regulares. Dificilmente você chega com um trabalho da tua cabeça e vende para uma dessas agências de notícias. Onde você consegue emplacar um trabalho que você desenvolve por conta própria é em outro tipo de agência de fotojornalismo – e, aliás, existem muitas - que no Brasil é um mercado que quase não existe, mas fora é forte (embora tenha sido ainda mais em outros tempos. São agências que trabalham só com fotografia, não com notícias. Elas até comercializam o trabalho que você produz aqui. Porém, suas sedes estão lá fora e é preciso saber fazer esses contatos. Eles distribuem o material principalmente para a Europa, Estados Unidos e Ásia.
SENSU - No sentido amplo de fotografar ciência (seja na natureza ou dentro do laboratório), quais são os principais desafios diante de cada pauta?
LALO - Minha formação é de fotojornalismo. Então eu procuro fazer a fotografia, de um modo geral, inclusive a fotografia de ciência, sempre respeitando a atividade que está acontecendo. Procuro interferir o menos possível. Porém, às vezes, principalmente na fotografia de laboratório e de outros ambientes pouco fotogênicos, muito duros - como bancadas com geladeiras e outras coisas sem grandes atrativos – há necessidade de interferir um pouco. Em alguns momentos você precisa usar realmente toda a sua criatividade para conseguir tornar aquela foto, que é feita em um ambiente pouco interessante, numa foto que, de alguma forma, atraia o leitor. Muitas vezes, os ambientes são muito áridos ou até mesmo muito bagunçados. É até engraçado isso. Mostra que o cientista parece estar tão focado no trabalho dele que não são se atenta à ordem das coisas. Normalmente eu não interfiro. Mas, se a bagunça é muito grande, preciso dar uma organizada no laboratório tirando, por exemplo, coisas como garrafa térmica do café, a marmita que ficou do dia anterior, coisas que não fazem parte de um contexto de laboratório.
SENSU - Você é um fotógrafo premiado, com muitos trabalhos de destaque. Qual é a cobertura de saúde e ciência que mais lhe proporcionou satisfação quando você se deparou com o resultado final?
LALO - Eu vou ser bem sincero. Eu me animo muito com as histórias, mas sempre acho que o meu trabalho fica muito aquém do que a história em si. A foto é menor do que aquilo que eu vi, do que aquilo que eu senti. O que fica na cabeça é uma sensação de decepção. Ficam sempre em minha mente as imagens que eu não fiz. Penso nas imagens que, por algum motivo, eu não fiz ou porque na hora eu não tive a sacada ou ainda porque eu achei que seria desrespeitoso fazer. Mas tem alguns trabalhos, lógico, que eu fico mais apegado não só pelas fotos que produzi, mas pelas pessoas que conheci, pelas histórias que ouvi, pelas situações que vivi. Por exemplo, eu fiz um trabalho com a Cláudia Collucci. Foi um especial, uns quatro anos atrás, sobre o mosquito aedes aegypti. Eram vários capítulos. Viajei para Uganda, para a Floresta de Zika, de onde partiu o vírus teoricamente. Viajei para vários lugares e aí, um dos capítulos era sobre as vítimas do Zika. Fomos para o interior da Paraíba e lá nós visitamos um ambulatório que recebia as crianças que tinham microcefalia. Conhecemos essas famílias, falando principalmente com as mães, pois é muito forte essa relação mãe e filho, principalmente. Depois de entrevistá-las no hospital, fomos à casa dessas mulheres, que moravam espalhadas pelo sertão, ali em volta de Campina Grande. E eu fiz um ensaio fotográfico não sobre as crianças em si, mas sobre a relação das mães com essas crianças. Todo esse cuidado que elas tinham com os filhos e o sacrifício que elas faziam para dar a assistência que essas crianças precisavam. Aí, eu fotografei, foi um trabalho reconhecido, ganhando prêmios e, com esse prêmio, como envolvia uma quantia em dinheiro, eu resolvi, no ano seguinte, visitar essas mulheres com à minha família e assim entregar o prêmio para elas. E até hoje eu tenho contato com essas mulheres. Algumas crianças estão se desenvolvendo muito bem e outras, infelizmente, não resistiram e morreram. Foi uma história que me marcou muito. Sempre chego em casa contando as histórias, mas esta foi uma oportunidade de levar minhas filhas para que pudessem ver, sentir e conversar com essas mães e viver um pouco daquilo que eu tinha falado a elas.
SENSU - Você contou que antes era necessário levar um laboratório ambulante para as coberturas. Qual é a sua visão diante da digitalização da fotografia, incluindo o amplo acesso aos smartphones, com inúmeros apps de edição? Interfere na qualidade da cobertura fotojornalística?
LALO - Essa coisa de todo mundo fotografar faz com que haja um fotógrafo por metro quadrado. Todo mundo é fotógrafo. Porém, não significa que essas pessoas vão produzir fotojornalismo de qualidade. São coisas diferentes. A gente obedece a critérios bem rígidos de apuração, de qualidade, de técnica e de narrativa. O que o fotojornalismo atual vai retratar não é aquele incidente que ocorreu agora. Para isso, tem um monte de gente com celular fotografando e filmando. O que o fotojornalista vai fazer hoje é, usando o seu conhecimento que ele tem, desenvolver um trabalho próprio, com profundidade, com outro padrão de qualidade. Pode ter até mesmo um fotojornalismo fazendo foto com seu aparelho celular, mas seguindo as diretrizes e desenvolvendo um trabalho sério, bem apurado, contando uma história que seja mais do que um simples registro. Já que todo mundo fotografa, o que as pessoas querem no fotojornalismo é uma visão mais pessoal dos acontecimentos. Esse material feito no geral pelo celular é mais para consumo de instagram mesmo, tendo o seu mérito. Mas isso e fotojornalismo são coisas diferentes.
SENSU - Qual é a lição de casa de um fotógrafo, a partir do momento que ele recebe a pauta junto com o repórter, para realizar uma boa cobertura de assunto de ciência para um veículo de mídia ou para um job corporativo?
LALO - Quando você está trabalhando para um jornal, você está fazendo jornalismo. Você está narrando exatamente do jeito que o fato se apresenta, sem qualquer interferência. A foto e a legenda dela tem que ser fiel a isso. Quando você vai fazer um trabalho corporativo, a tua pauta às vezes tem algum tipo de direcionamento. Por exemplo, você vai fotografar um hospital e é uma pauta corporativa, a direção do hospital quer mostrar o que há de melhor ali. Então, você não vai focar a tua atenção para uma coisa que você vê que não está legal, para uma coisa que não está no padrão do hospital. Você vai selecionar aquilo que você vai fotografar de forma que esteja de acordo com o que cliente pediu. No corporativo você, se precisar, faz um retoque, por exemplo, numa parede que tem um risquinho. No jornalismo, você jamais deve fazer isso. Tem também um tipo de linguagem corporativa, que se adota muito hoje em dia, em que você dá uma cara de veracidade para aquilo que você está mostrando. Avalio que um excesso de perfeição dá uma cara de artificial, de foto de banco de imagem e isso é um negócio que perde até um pouco da credibilidade. Muitas vezes, até mesmo o tipo de trabalho corporativo que eu faço, é um trabalho que quase não tem esse tipo de manipulação. E as pessoas me contratam para isso. Para mostrar as coisas do jeito que elas são. Com personagens e situações reais. Então, por exemplo, quando eu tenho que mostrar um equipamento cirúrgico novo, como um robô, eu fotografo uma cirurgia de verdade. A cirurgia de verdade não é perfeita, porque tem um pano ali, um algodãozinho ali, então eu escolho o melhor ângulo. Embora seja um pouco mais direcionada para ser uma imagem que o cliente quer, é quase uma pauta jornalística.
SENSU - Muitas empresas optam pelos bancos de imagens que você mencionou. Você acredita que elas percam o lado humano?
LALO - Eu acho tão feio você ver um anúncio de algo brasileiro que você vê que aquele cara é um gringo. Que não é um médico daqui. Não é uma família daqui. Que não representa a gente. Isso é totalmente plastificado. É desumanizado. Esse tipo de coisa, por exemplo, eu não faço. Eu faço o mundo real. Eu só sei fotografar desse jeito e isso se aplica também para o mercado corporativo.
SENSU - Como você avalia o mercado de fotojornalismo hoje?
LALO - Você imagina um navio afundando – que pode ser o Titanic – e aí esse navio já afundou quase todo, só ficando aquele mastro para fora. Eu estou no mastro, penduradinho com a minha maquininha fotográfica. Embaixo, tem um monte de salva-vidas e um monte de maquininhas boiando. É assim que está o mercado hoje. Eu sou uma exceção total. O que eu produzo, o tipo de material que eu faço, os projetos que eu toco, são projetos de longo prazo, mas o mercado no geral está super difícil. São três fatores que atrapalham. O mercado vem em uma decrescente por conta desta transformação dos jornais de papel para o online e, nesse modelo de negócios online, os jornais ainda não conseguiram encontrar um caminho que seja rentável. O segundo fator é uma coisa estrutural brasileira, que é a falta de leitor. Isso limita o alcance. O terceiro ponto é a crise econômica brasileira. Você vê todo mundo quebrando e havendo menos espaço nas mídias tradicionais.
SENSU - Quais são os possíveis caminhos para ampliar o horizonte do fotógrafo?
LALO - Os grandes jornais e algumas grandes revistas continuam aí, na ativa. E ainda possuem muita repercussão. Só que elas não têm dinheiro suficiente para produzir certos conteúdos, certos projetos. Então, o que a gente está fazendo é ir atrás de onde está o dinheiro: nas fundações, nas ONGs, nos institutos etc. Eles querem colocar algumas pautas em discussão. Então, vamos pegar o potencial de investimento desse pessoal, produzir o conteúdo e fazer uma ponte entre o dinheiro e a plataforma na qual nós vamos publicar, que são os jornais. Neste modelo, a gente tem conseguido contar grandes histórias nos jornais, utilizando dinheiro externo, sem qualquer influência editorial. E isso não seria o branded content (que é um conteúdo dirigido), mas sim coberturas especiais, com uma abordagem mais ampla de determinado tema colocado em debate. O projeto parte de nós e conduzimos da forma que queremos. Estou agora, por exemplo, tocando uma série de reportagens na Amazônia que tem patrocínio de duas fundações estrangeiras, uma norueguesa e outra norte-americana. A gente sabe produzir, então vamos fugir da crise indo em busca de investimento. Na minha experiência pessoal, por mais que os jornais estejam cambaleando, eu nunca trabalhei tanto quanto nos últimos sete anos. Viajei o mundo inteiro, cobrindo pautas incríveis, como o mundo de muros (os muros que dividem países), coberturas especiais sobre mudanças climáticas, sobre desigualdade global. É muito legal essa coisa de ser online hoje em dia e assim há maior espaço para publicar, principalmente conteúdo multimídia. No entanto, vejo que muitos fotógrafos têm dificuldade em se adaptar às mudanças. Eu soube me adaptar. Em 2011/2012, eu já fazia foto e vídeo, ou seja, já fazia conteúdo multimídia para a Folha. De quase todos os grandes especiais do veículo, desde então, eu participei. Não porque caso eu não fizesse isso acabaria com a minha carreira, mas sim simplesmente porque eu via que a plataforma online me possibilitava usar vários tipos de ferramentas. Afinal, o que me interessava no final das contas era contar histórias, seja fotografando, filmando ou fazendo as duas coisas.
SENSU - Quais mensagens-chave você passaria para um profissional que esteja ingressando no mercado de fotojornalismo?
LALO - Se ele ficar com a ideia fixa de só fotografar e atuar em coberturas específicas, vai ser muito difícil para conseguir sobreviver. O cara que tá começando a trabalhar com fotojornalismo precisa fazer foto e vídeo. Quem sai da faculdade hoje precisa saber que ele tem que ser um repórter visual. Vai continuar contando história, que é o essencial, mas vai precisar trabalhar com o máximo de ferramentas. Ele precisará saber trabalhar, com sua máquina, as duas formas de narrativa, sabendo que, para cada uma, há uma forma diferente de se passar a mensagem.
SENSU - E buscar uma segmentação não é um bom caminho?
LALO - Não há esse espaço. O campo de fotojornalismo nunca teve uma segmentação de fato. É uma área do jornalismo que é mais generalista do que específica. É um cara que cobre várias áreas. Não é alguém que faz só saúde, ciência ou outra determinada editoria. Lógico que, com o tempo, o fotógrafo vai encontrando o seu caminho e passa a escolher as coisas que dão a ele mais prazer e que ele faz melhor e, assim, aos poucos, ele vai afunilando essa atuação. Mas, para aquele que está começando, o melhor é estar com a cabeça aberta e desfrutar dos recursos multimídias, sabendo que há um universo de lugares para expor seu material.
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